A hipocrisia solidária.
Este vídeo revela imensa coisa. Na crueza das suas
imagens há algo de artístico, no sentido em que a arte verdadeira é a
demonstração cabal de uma realidade.
E aqui chocam várias realidades que explicam uma só ...
Um país que se tornou refém de uma oligarquia de interesses, o mundo à parte
dessa mesma oligarquia, as semelhanças gritantes entre dois países com
problemas que pareciam díspares no entanto cada vez mais idênticos, ou seja, um
enorme fosso entre priveligiados e todos aqueles que se movem fora das lógicas
dos aparelhos partidários e a sua profunda simbiose com o mundo financeiro e
empresarial. Um mundo de favores que convém ir pagando, mas também distribuindo
para gerir em silêncio cumplicidades e a cumplicidade dos silêncios.
Depois existem quebras, anomalias nesse universo quase
perfeito por onde se comunicam realidades distintas. Neste caso a homenagem a
um distinto "buraco negro" e a estranheza que causa a falta de
estranheza que tal evento estranho devia causar...
O desfile habitual das vaidades... Os rostos cúmplices
por acção ou omissão, nomes sonantes até da cultura, que de novo estranhamente,
não se importam de estar associados a uma homenagem que é também a homenagem de
uma anomalia, uma profunda e revoltante anomalia.
E aí surgem os voluntários do protesto, no seu
amadorismo pode-se sentir uma genuína raiva ... a incompreensão perante um
estado de coisas que os arrancou do seu país natal e que ali, a milhares de
quilómetros da terra que os viu nascer, está agora a ser incensado, coberto de
louros e palmadinhas na pessoa de um claro representante da ENORME degradação
moral, ética e intelectual a que chegou a nossa classe (sem classe nenhuma)
política.
Portanto este vídeo é por isso arte.
Dentro de tantos semelhantes dei por mim a ver este,
primeiro descrente e depois progressivamente interessado, porque algo me
despertou... sensações puras mesmo que dolorosas, de que certas coisas nunca
mudam, apesar de nomes bonitos, como igualdade, democracia, justiça e etc e
tal...
Nada há aqui de ideológico ... As palavras de ordem
podiam ser proferidas por uma qualquer garganta. São apenas o som de quem não
se conforma com o cinismo, de quem já não consegue pensar apenas na
"normalidade" da vida quando vê essa mesma normalidade posta em causa
pelo mais reles oportunismo.
Num mundo em que cada vez menos cidadãos têm acesso a
uma vida digna, os "botões vermelhos" vão estando em cada vez menos
mãos. O pressionar de apenas um desses botões (acionando uma qualquer
transferência bilionária para um paraíso fiscal, um contrato ruinoso para o
Estado ou o desvio de verbas públicas para a empresa de um amigo que passados
uns tempos até se torna ministro) causa infinitamente mais prejuízo económico
mas sobretudo moral a uma nação, que centenas de milhares, preguiçosos ou não,
que vivam encostados, por exemplo, a um qualquer rendimento mínimo de inserção.
E é nestas falácias que nos vamos movendo. Coisas que
dão boas conversas de café, despiques e debates intensos, no entanto a cara
daquelas gentes entrando na "homenagem", as suas expressões de
incredulidade, vergonha ou psicótica indiferença falam bem mais, dizem bem mais
de uma sociedade e do que realmente se passa nos corredores onde tudo se decide
e cozinha...
Uma última palavra para quem levou aquele protesto a
avante ... Aquele é o protesto de todos aqueles que não se conseguem sentar
nesta cadeira de pregos que nos oferecem, esta cadeira do "deixa lá
", do "não te chateies", do "alguém há-de resolver"...
Bastavam uns poucos como aqueles à porta dos eventos
certos para que muita coisa mudasse... nem que fosse para que esses mesmos
eventos passassem a fazer certas homenagens à porta ... fechada! Que a vida
também é feita do nosso sossego.
@ manuel tavares
Comentários
Enviar um comentário