"Mariquices"
O barulho
do aspirador soou ameaçador. Uma corrida rápida para o escritório confirmou os
meus receios... Com um ar absolutamente louco estampado na face, Mário
entretinha-se a aspirar de forma sistemática e energética tudo o que via à
frente, canetas, borrachas, lapiseiras, marcadores, clips e agrafes. Enquanto o
fazia ia surgindo a intervalos regulares um sorriso demente que pendurava nos
olhos dilatados...
O meu
primeiro pensamento foi claro como água. O meu pai não gostaria certamente de
ver a sua caneta favorita, companheira de tantas horas, enrolada num novelo de
pó e cabelos. O segundo foi igualmente claro...Como é que alguém poderia estar
a fazer aquilo, depois da horrível manhã pela qual me havia feito passar?
Mas
voltemos umas horas atrás...
- Vamos à
"obra" ?
- Mas
queres ir à "obra" fazer o quê Mário?
- Nada de
especial pá! Vamos lá brincar ... Tu também pá ...
- Mas
brincar com o quê Mário !? Com o quê !?
- Ora ...
Brincar... Sei lá...Brincar com qualquer coisa !
- É que
sabes Mário, da última que lá fomos não correu lá muito bem...
- Lá estás
tu pá! Não sejas mariquinhas!
Pronto.
Tinha de dizer a palavra proibida ... Mariquinhas. Claro que fui, como não
poderia ir?
Chegados à
obra tudo cheirava ao habitual. Pó de cimento, pó de tijolo, pó de areia, pó de
qualquer coisa indefinível mas que seria basicamente...pó.
A obra
estava parada há uns tempos mas o material encontrava-se todo por lá. Tijolos e
sacos de cimento, betoneiras e carrinhos de mão tudo desarmoniosamente
espalhado de forma cientifica...
- Mário
tens a certeza que os guardas não estão por aqui?
- Ó pá! Lá
estás tu pá! Lá estás tu com mariquices! A esta hora não costumam estar! Estão
na obra ao lado a trabalhar e só passam aqui de vez em quando...
Nos anos
oitenta as obras disparavam por todo lado como cogumelos...A cidade parecia em
certos locais um imenso estaleiro. Também não era raro algumas ficarem paradas
meses ou anos a fio, sem qualquer explicação ou razão aparente. Como o imenso
lago onde costumávamos brincar perto da escola, de margens a pique, que íam dar
a uma substância lamacenta que nós, por preguiça, chamávamos água. Depois de
repente, nasceu lá uma Igreja Baptista e perdemos o local onde perseguíamos rãs
à pedrada...
O Mário
mal chegou começou logo aos chutos nos primeiros tijolos que viu, com uma
alegre e inflamada fúria. Eu começava a recear que todo aquele barulho atraísse
os trabalhadores da obra ao lado, mas as preocupações do Mário eram claramente
diferentes. De repente parou e começou a olhar fixamente para um carrinho de
mão, estávamos já nós no quarto andar, onde apenas havia tecto e colunas e nada
separava a obra do exterior.
Como
sempre as "paragens" do Mário tinham o condão de me deixar mais
preocupado que as actividades a que se entregava. Possivelmente porque
significavam que algo se seguiria, não só inesperado, mas de grau ainda mais
destrutivo que a anterior "avaria" que o entretinha.
- Eh pá
ajuda-me aqui a encher o carrinho de tijolos!
- Para quê
Mário?
- Ouve lá,
lá estás tu! Ajuda lá porra! Vamos só passear o carro aqui pelo andar. Olha está
ali outro até podíamos fazer uma corrida de carrinhos, mas primeiro ajuda-me a
encher aqui este que já te ajudo a encher o teu.
A
contragosto lá fiz o que me pedia. Depois de arranhar-mos as mãos em vários
tijolos meio quebrados, lá enchemos o carrinho até mais não.
- Olha pá,
agora vai ali buscar o teu que eu vou só ver se dá para andar com o carrinho
sozinho, tás a ver?
- Ok Mário,
mas ajuda-me a encher depois o meu também...
Mal volto
as costas começo a ouvir a deslocação do carrinho... Primeiro pesada e depois
ganhando velocidade rapidamente... Demasiado rápido até...
O estrondo
foi tão grande que pensei que metade da obra tinha desabado. Olho para trás e
vejo o Mário na beirinha do andar ainda ofegante, do carrinho nem
vê-lo...Nada...
- Que
fizeste meu grande camelo !?
- Ó pá, Ó
pá ... Não sejas maricas pá, não foi de propósito... Eu lá sabia que havia uma
betoneira mesmo aqui por baixo...
Corro,
todo eu nervos, até ao "local de lançamento". Lá em baixo assentava
uma nuvem de pó, como num filme em câmara lenta. Quando finalmente foi possível
ver algo, a confusão e dimensão dos estragos era indescritível...A betoneira
estava tombada de lado, totalmente amolgada e reformada compulsivamente. O
carrinho esse estava absolutamente desfeito. A roda da frente saltara fora com
o impacto e tinha ido caprichosamente parar a um monte de entulho.
Foi
precisamente de trás desse monte que surgiram os dois guardas da obra ao lado,
que como já sabíamos, estava a cargo do mesmo empreiteiro. Imediatamente se
aperceberam de tudo e olharam para cima vendo-nos aos dois com cara de parvos
empoleirados na borda:
- Olha os
mesmos melros de outro dia ! Agora é que vocês a arranjaram bonita, quando vos
pusermos as mãos em cima não saem daqui só com um par de tabefes não...
Saltamos
como uma mola. Começamos a correr em círculos como duas baratas tontas.
Podíamos ouvir perfeitamente as vozes dos homens enquanto subiam as escadas, e
a cada segundo que passava crescia o nosso pânico. De repente, no lado do andar
mais afastado das escadas avisto o que poderia ser uma possível saída, um
enorme monte de entulho que chegava quase ao segundo andar.
- Mário
vamos saltar para ali!
- O quê !?
Deves estar maluco!
A minha
cara de surpresa e desdém provocou-lhe um raríssimo efeito, Mário de repente
parecia quase normal. O "mix" do medo com as suas "falas"
hilariantes tornaram-no por segundos consciente da evidente idiotice que
acabara de dizer. Não fosse a gravidade da situação e certamente me teria rido
na cara dele durante uma hora.
O impacto
foi previsivelmente desagradável...O Mário aterrou numa parte menos densa, o
que não foi propriamente uma vantagem para a sua fuga, dado que ficou enterrado
até à cintura em detritos de toda a espécie. Eu acertei numa tábua e torci
dolorosamente o pé, indo a deslizar em cima dela pelo monte abaixo. Teria sido
divertido se conseguisse pensar noutra coisa que não naquela dor aguda que me
subia pela perna acima...
- Mário anda!
Gritei-lhe
enquanto me esgueirava por baixo do mesmo buraco na vedação de arame por onde
tínhamos entrado. Para meu azar uma das aguçadas pontas de metal da vedação
enfiou-se a direito na coxa da perna, a mesma do meu pé torcido.
Mário
corria aparentemente incólume, mas absolutamente irreconhecível depois do seu
banho de desperdícios e pó. Como uma enguia mergulhou pelo buraco da vedação.
Lá de cima do quarto andar os guardas olhavam-nos ainda incrédulos, sem
proferir palavra...
- MÁRIO ÉS
CAPAZ DE PARAR COM ESSA MERDA !?
Mário
olhou para cima com um olhar vazio agarrado ao tubo do aspirador como se este
fosse uma caçadeira. Era incrível a sua "dedicação à causa" depois da
horrível manhã porque ambos tínhamos passado. Não resisti e preguei-lhe um
valente pontapé no cu. Para meu azar usei o pé que tinha lesionado pouco mais
de uma hora antes. Enquanto me contorcia de dor, ainda o consegui ouvir
dizer:
- Para tu
com essas...Com essas...Com essas mariquices !
© Manuel
Tavares 11/10/12
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