Há coisas que nunca deveriam sair de onde estão.
Saí de
casa. A rua adensa-se a cada passo. Olho os rostos que avançam apressados, não
sei para onde vão...Porque correm eles todos os dias? O que pensam nas horas
mortas nos comboios, nos autocarros, nos automóveis?
. . .
Volto
atrás. Dentro de casa vou deixando pedaços de mim. No quarto de banho encontro
um eu matinal, na cozinha os horizontes "abrem-se" para ouvir
notícias cada vez mais iguais. O quarto de dormir esse continua parado, com
aquela nuvem espessa e protectora de muitos sonhos, muitos cansaços, muitas
carícias, muitas promessas mas, sobretudo, muito, muito sono.
. . .
Tropeço a
ver o jornal num quiosque. Não sei que procuro naqueles pacotes de letras e
imagens insidiosamente colocadas para chamar a nossa atenção...Corro
para o "guichet" e compro o bilhete. Oiço uma voz roufenha
"Inter-regional para Coimbra na linha 2", e não sei porquê apresso o
passo mesmo sabendo que ainda faltam cinco minutos para fazer apenas vinte
metros... "Calma", digo eu para mim próprio, e com este remédio
consolo-me pensando que afinal sempre vou tendo algum auto-controle perante as
minhas irritantes reacções involuntárias.
. . .
Cinco
minutos. Foi quanto disse a mim mesmo que ia demorar o meu duche. Ah! Mas a
água quentinha a descer-me pelas costas como mil mãozinhas de fada cantando
"Só mais um bocadinho". Coloco a água mais fria para "me por
fino" e saio triunfante pensando nesta pequena vitória espartana, ascética
como o "raio que o parta". Quantos de vocês conseguem colocar água
gelada no fim do banho em pleno inverno!? Ah!? Pois, pois... Cobardolas...
. . .
Está um
frio de rachar em Coimbra. Mal sai do comboio as orelhas entram em profundo
choque térmico. Vou aquecendo enquanto subo as escadas em direcção à Sé Velha.
Coimbra, neste ano de dois mil e um da graça de Deus, é sem dúvida uma linda
cidade mas tudo parece fazer concorrência com a Sé. Os prédios têm um ar baço,
mesmo os aparentemente mais novos, e por toda a cidade há uma atmosfera
“vintage”...Bem, desde que não me saia de uma esquina um estudante a gorgolejar
um faducho caquéctico (que isto do fado, apesar de gostar, é daquelas coisas
que gosto de ouvir voluntariamente, nem sei explicar porquê). Acho que aquela
coisa romântica do diletante e orgulhoso membro da academia coimbrã já aborrece
um bocado...
Não se
fiquem pela tradição rapazes e raparigas que esta não enche a barriga a
ninguém.
. . .
Na cozinha
dá-me vontade de comer tudo mas como sempre acabo invariavelmente a mastigar o
mesmo, ou porque não tenho tempo ou por simples preguiça.
Imagino
sempre um pequeno-almoço como sumos exóticos, queijos e doces variados,
torradinhas suculentas e croissants fofinhos...Enquanto isso engulo uma chávena
de cevada e duas ou três bolachas de água e sal, agarro numa banana (é mais
fácil de descascar) e saio a correr porta fora.
. . .
Entro no
conservatório e começo a distribuir os cumprimentos da praxe. Agarro no livro
de ponto e na guitarra e subo apressado para a sala, o meu reduto e câmara de
tortura. Entretanto o aluno chega muito antes do horário estabelecido e para
minha irritação entra com a maior naturalidade na sala. Não sei porquê não me
importo de ficar depois da hora mas detesto começar antes da mesma. Peço-lhe
que aguarde roendo-me todo por dentro, ele parece notar e de um ápice recua
rápida e estrategicamente deixando o leão na sua jaula.
"Não
te preocupes que eu já te trinco..." Penso eu em murmúrio mental...
. . .
Mordo a
língua ao mastigar uma chiclete que já se encontra em avançado estado de
anemia. Primeiro a surpresa e depois aquela dor aguda e desagradável que todos
tão bem conhecemos. Como tenho de direccionar a minha fúria cuspo-a energeticamente
pela janela do comboio, só que esta realiza um caprichoso arco e bate no
parapeito fazendo um "rebound" em direcção aos pés de uma velhota.
Humilhantemente baixo-me perante o seu olhar acusador e com um gesto seco
lanço-a à mão na direcção do anónimo exterior...
. . .
AAAAAAAAATCHIMM!!!!!
Não tenho
tempo de colocar a mão à frente da boca e sinto que o espirro foi bastante
produtivo. A reacção estranha do meu aluno/alvo não me deixa
dúvidas...Desfaço-me em desculpas mas este parece ainda mais envergonhado do
que eu enquanto apressadamente pede licença para ir à casa de banho já a
caminho do objectivo.
Desolado,
não posso deixar de pensar que há coisas que nunca deveriam sair de onde
estão...
© Manuel Tavares
Conheço bem este texto. Gosto de o ver publicado :)
ResponderEliminarDe onde o conhecias?
EliminarDo facebook? Até agora só o publiquei lá.
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